Saturday, March 29, 2008

Uma sombra do que foi

Partia do princípio que estava triste por ter uma única ideia, naquele dia, e que a mesma era sobre a morte.
Foi na véspera da preparação do Sábado e também da grande festa da Páscoa que se encontrou perante o desfecho do caso. Desde a madrugada daquela sexta-feira que a conduta pessoal lhe causava, apesar de tudo, enorme surpresa.
Já não cultivava a mesma frieza da noite anterior, nem pensava que fora uma coisa comum o que acabara de fazer. Limpou, com a manga da túnica, a saliva dos cantos da boca, que se acumulara ao gritar aos principais sacerdotes e anciãos, limpou o suor que seguia na direcção dos olhos.
- «Eu condenei um homem inocente à morte! Traí um inocente!» – foi o que Iscariotes gritou, engolindo em seco um nó na garganta.
Até ali fizera tudo com discrição, para evitar tumultos, usara a astúcia, mas pensava com tristeza que o dinheiro não tinha necessariamente que o transformar dessa maneira, mas era tarde.
- Se a minha alma fosse material, estaria agora destroçada em farrapos – disse-me Iscariotes, quando se despediu, à pressa, nessa manhã.
Seria como um sentimento desagradável e simbólico que quase fizera em farrapos a sua capa, se não fosse apenas o acaso de a rasgar numa esquina afiada de uma das paredes do templo ao fugir apressadamente.
Quem o visse, naquele momento, com toda aquela agitação, diria que estava ali um sicário, desesperado para se vingar dos romanos, procurando nas sombras entre as esquinas sinuosas da rua que levava para fora da cidade, como uma criança que procura no ar o lado de onde vêm as vozes dos pais.
Quem o conhecesse de perto, como eu, diria que aquele homem estava agora com uma crise de fé, balbuciava um nome ininterrupto «Mestre», como um agnóstico de boa vontade. A ironia já não era o seu anteparo, a ironia que sublimara naquele sinal identificador, do beijo no mestre, com que completou o processo da rejeição que sempre demonstrou em relação a Jesus.
Vi-o afastar-se com o cabelo coberto por um talit, curvado, sem cabeça, como a querer cozer às sombras o seu rosto.
Ali na rua estava instalado aquele burburinho com que se iniciam as manhãs muito cedo, havia a um canto oito ou nove pessoas que conversavam sobre uma condenação invulgar, que o Sinédrio efectuara de noite.
- Foi uma rusga e uma acareação.
- Com certeza, porém foi tudo um pouco às escuras.
- Sim – disse um homem alto que estava à ponta do grupo, que percebeu outro sentido na alusão à obscuridade – sim, às escuras, à margem da própria legalidade religiosa.
- Mas não, o politicamente correcto vai prevalecer, Pilatos dará a palavra derradeira. – Sentenciou alguém, que se evidenciava da mediania do grupo.
Ao olhar Iscariotes deste ponto, parecia um homem que ia decidido a fazer uma viagem.
E na última casa da rua, onde se virava a esquina para o caminho dos arredores da cidade, como se virasse uma página, deitou para trás um olhar de medo, escorregou ou tropeçou numa relevância do terreno, não vi bem, e desapareceu repentinamente.
Soube que começara bem com o dinheiro que os sacerdotes lhe tinham dado na noite anterior. Mas durante a mesma, o toque naquelas trinta pratas não se diferenciara daquele com que costumava passar a mão nas moedas do saco das esmolas.
Tais remorsos, por assim dizer, sensoriais, revelaram-se através de uma náusea incontida. Há sempre um momento em que os pecadores têm vergonha, porque esta é, desde as origens do homem, uma forma de conhecimento.
Mas o seu voltar atrás foi apenas materialista: foi só para devolver aquilo de que mais gostava, levado sem esperança pela angústia da culpa.
Cabisbaixo, Iscariotes dissera-me qualquer coisa apressadamente sobre a repulsa que sentia por si, como aguentara a indiferença dos principais do templo, e como depois de se aproveitarem dos seus préstimos sem ética, o deixaram entregue ao seu destino solitário.
Iscariotes não podia absolver-se, porque não tinha nenhuma dúvida razoável sobre o seu acto. E nunca fora homem para possuir uma apreciação moral de um acto daquela natureza.
A menos de dez estádios de distância, já em pleno campo, levantou os olhos por entre os fiapos da manhã enevoada, uma névoa que parecia consistente, e lá estava a árvore raquítica, plantada como um rubor floral no meio do verde, carregada de flores purpúreas.
A chegada da morte, media-se agora em metros, não em tempo, porquanto Iscariotes estava a levar seus últimos passos a aproximarem-se do local.
E aí deteve-se bruscamente.
- Foi acossado pelo remorso – comentou um publicano que era apóstolo de Jesus, a quem chamavam Levi mas na realidade era Mateus, enquanto nos aproximávamos do campo do oleiro.
- Foi tocado de remorso – repeti eu com voz triste, enquanto procurava ver fragilidades na árvore que Iscariotes usara, já o sol fazia ângulos rectos entre os objectos e as sombras.

Especializações


BlockquoteHoje vêem-se muitos a querer ser pregadores, mas poucos desejam o pastorado. O púlpito atrai, mas a dureza do pastorado afasta. Foi assim que surgiram, por esse mundo fora, os «ministérios itinerantes» e as subsequentes especializações. Temos hoje especialistas em baptismo no Espírito Santo, em cura interior, em finanças, em profecia, em liderança, em ministérios etários, como em evangelismo, em ensino, em missões».


(Pr. Brissos Lino)

Thursday, March 27, 2008

O Tempo que passou


BlockquoteUma religião não requer apenas um corpo de sacerdotes que saibam o que estão fazendo, requer também um corpo de fiéis que saibam o que está sendo feito.(T.S.Eliot)

Monday, March 24, 2008

Luis Gaspar diz:

053 - J.T. Parreira e Jorge Sousa Braga

Neste programa, voltamos, a pedido, às lendas de povos antigos e recordamos palavras de ouro de dois poetas: J.T. Parreira e Jorge Sousa Braga.A música que acompanha a lenda é, como sempre, de Luís Pedro Fonseca e a que ilustra a poesia do “magnatune.com”
Standard Podcast [21:51m]: Hide Player Download

Friday, March 21, 2008

A pedra a tapar a evidência

Uma pedra a tapar
a evidência, apenas uma pedra
bloco uníssono
de silêncio
Feia, indomada
a pedra a fechar a morte
perante a qual
toda a dúvida se acaba

E no entanto nada há
mais simples
do que a pedra, símbolo
do que queda irresolúvel
Uma pedra branca, granito
não mármore, nem
impossível esmeralda
a pedra a tapar a evidência

Pedra desviada pela música
toque de rosa ou
da imensa Mão celeste
Então a pedra abre-se
ao interior da morte
de onde ao sol passou
o Princípe da Vida.

Monday, March 17, 2008

As Pedras


“Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo…”

(Fernando Pessoa)


Como peças de Lego
afasto as contrariedades
do caminho

observo-lhes a singularidade
percebendo as arestas gastas
de cada uma

mas só se querem quietas
as pedras
para construir
as catedrais da vida
os castelos do sonho

palavras de calcário
que lançadas a esmo fazem
buracos na alma.


Palmela, Dezembro de 2007

(Brissos Lino)

Wednesday, March 12, 2008

Jornalismo Evangélico de ocasião

A propósito do conflito no Iraque, fala-se muito em ganhos e perdas na guerra da informação, das notícias e dos factos transmitidos em tempo real, e da comunicação que as palavras e as imagens veiculam para o receptor.

Segundo os melhores investigadores da comunicação social, informação e comunicação não são sinónimos. Informação é a mensagem, comunicação é a relação que essa mensagm estabelece com o leitor, telespectador ou ouvinte.

Os jornais ou revistas e outros meios de comunicação social do meio evangélico não podem, nem devem fugir a este paradigma. Nas lições de jornalismo evangélico, costumamos iniciar de uma forma pedagógica os trabalhos com a referência aos vocábulos «noticiar» e «publicar», inseridos no Segundo Livro de Samuel (1,20).

Mais do que a alusão histórica ao conceito remoto da notícia, digamos que no Alto Velho Testamento, existe já a preocupação com os resultados do binómio informação-comunicação.
A mensagem que a informação iria fazer passar não era benéfica, apesar das chamadas objectividade, rigor e verdade, porquanto era uma comunicação que exerceria influência psicológica sobre quem a ouvisse - tristeza e desânimo para uns, gáudio e galvanização para outros -, obviamente os inimigos de Isarel.

Eis o que me parece que está a suceder com alguns textos de opinião publicada em órgãos de informação evangélicos, designadamente no Brasil, que deveriam resguardar «a religiosidade cristã», de um modo geral, e a utilização da Bíblia de uma maneira particular, sem que óbvia e desejavelmente faltassem à verdade factual, mas não dando a impressão de estarem «a dar tiros nos próprios pés».

Não basta já que detractores usando sem seriedade a capa da «filosofia» vão sugerindo que Deus «consente» que o Mal caia sobre velhos, mulheres e crianças indefesos, ou, retomando um pensamento sério de Unamuno, que assista silencioso à tragédia universal, como ainda por cima nós próprios estarmos a transformar alguns dos conflitos actuais em resultados de um fundamentalismo cristão exacerbado e alegadamente de «extrema-direita»?...

Parece-nos que existe, em certos redutos de opinião cristã evangélica, um cristianismo bíblico... de esquerda e outro de direita. É da natureza da Fé e da Ética Cristã não afirmarem uma coisa e o seu contrário.

Colocar a nossa honestidade religiosa e intelectual ao serviço dos críticos do Cristianismo Evangélico com a impressão de que estamos a ser os mais justos, a fazer côro com pressupostos ditos pacifistas, é o que menos se espera do jornalismo evangélico, nomeadamente em língua portuguesa, sobretudo nestes tempos de crise.

(Artigo escrito e publicado em 2003, e reutilizado numa Tese de Licenciatura na Un Rio de Janeiro em 2006, mas que continua a ser válido para hoje.)

Wednesday, March 05, 2008

Antologia Poética

Há 18 meses:
3 Irmãos - Antologia (PDF)
Antologia poética reunindo obras de três dos maiores poetas evangélicos da língua portuguesa, Gióia Júnior, Joanyr de Oliveira e J. T. Parreira

Magnificat

Nada mais quieto que os ouvidos
e os lábios de Maria.
A manhã pairava pluma
desprendida de uma ave.
O anjo em cada palavra decifrava
o código de Deus
como profeta antigo.
A luz atravessava o vento
quando o anjo abria
a boca com palavras
e o coração da serva do Senhor.
Nada mais quieto que o peito de Maria
pairando entre ondas de sangue
e alegria.

Monday, March 03, 2008

Do Paraíso para nenhuma direcção

Miguel Ângelo, Expulsão do Paraíso( 1509/1510)

Do Paraíso para nenhuma direcção
sem casa
traziam nos olhos
as árvores do Éden
Uma saudade do disco lunar
que é a seda da noite
e a derme marítima
que fica de olhar o mar
e o coração húmido das lágrimas
e uma tristeza aquosa
ao fundo dos olhos na água
das origens, ancestral.
4-11-2007